É significativo que não se tenha tocado nos porta-aviões, núcleo da superioridade americana

 

Rubens Ricúpero

O corte no orçamento militar anunciado por Obama é mais expressão de reajuste nas prioridades estratégicas do que prova adicional da decadência do poder americano.

Depois de dez anos de desvio ocasionado pelos atentados de setembro de 2001, o esforço principal volta a apontar para o verdadeiro rival estratégico, a China.

Um século atrás, as guerras balcânicas antecipavam a Primeira Guerra Mundial, início do declínio da hegemonia europeia e de sua substituição pela dos EUA.

Sete anos antes, o barão do Rio Branco já adivinhara o deslocamento do eixo do poder de Londres para Washington, criando na capital americana a primeira de nossas embaixadas e para ela nomeando Joaquim Nabuco.

O século 20 seria dominado por guerras no coração da Europa, mobilizando gigantescos Exércitos terrestres de milhões de combatentes.

O deslocamento do eixo econômico e político para a Ásia altera a natureza dos desafios estratégicos, que passam a ser marítimos.

O desengajamento do Iraque e do Afeganistão, juntamente com a transferência da prioridade do Oriente Médio para a Ásia do Leste, significam que o Exército suportará o peso primordial dos cortes.

É significativo que não se tenha tocado nos porta-aviões que constituem o núcleo da indiscutível superioridade americana.

A meta dessa “segunda Guerra Fria” não é provocar um conflito armado com a China, e sim organizar sua contenção dentro de um cordão sanitário formado pelos aliados declarados ou tácitos dos EUA.

Partindo ao norte do Japão e da Coreia do Sul, a barreira de contenção prossegue por Taiwan, Cingapura, Indonésia, Malásia, Tailândia, Vietnã (que teve curta guerra contra a China em 1979), Filipinas, Índia, Austrália e Nova Zelândia.

Trata-se de formidável arco de penínsulas, ilhas, arquipélagos, países que, na maioria, disputam com a China a soberania sobre ilhas e zonas marinhas de exploração petrolífera. Nessa, área estão os maiores portos do mundo, as grandes frotas mercantes de contêineres, uma economia costeira e um comércio em grande parte marítimo.

Pelo estreito de Málaca, que domina a entrada do mar do Sul da China, passa seis vezes mais petróleo que por Suez e 17 vezes mais que pelo canal do Panamá. Oitenta por cento das importações chinesas de petróleo trafegam por essa rota.

O interesse comum que une americanos e aliados é impedir que a China faça desse mar um lago interior, como os EUA fizeram com o Caribe no século 19. Para tanto, a Marinha em sentido lato, abrangendo a Força Aérea, é arma decisiva.

Desse ponto de vista, a superioridade americana é esmagadora. Sua Marinha desloca quase 2,9 milhões de toneladas ante pouco mais de 3 milhões do resto do mundo, inclusive as 280 mil toneladas da China!

Afonso de Albuquerque, o “Albuquerque terríbil” de Camões, já havia concebido plano para controlar o comércio asiático de especiarias mediante a dominação de quatro pontos cruciais: Goa, Málaca, Hormuz (entrada do golfo Pérsico) e Áden, no mar Vermelho. Chegou perto, fracassando apenas na última.

Meio milênio depois, mudam as armas e os países. A estratégia, porém, até que não mudou tanto.

FONTE: Folha de São Paulo

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Invincible

Muito bom o texto.

Temos que lembrar que por terra a China tem com adversária a Índia e que os EUA tem livre acesso ao Afeganistão. A China está toda cercada e vive o temor de ter a guerra no seu quintal.

O bom disso tudo é que a chance de conflito e mínima.

Daglian

Nisso não há quem bata os americanos… eles cercaram os japoneses da mesma forma (óbvio que em outras ilhas) na segunda guerra mundial e comprovaram que esta estratégia é muito eficiente. A China que se segure, porque bem ou mal, ainda não tem a experiência que os americanos têm.

Ivan

Invincible, “…e que os EUA tem livre acesso ao Afeganistão.” Mais ou menos. O Afeganistão não tem saída para o mar, com Iran à oeste e Paquistão ao sul e leste, sendo o norte dividido entre ex-repúblicas soviéticas igualmente sem mar. Ainda tem uma pontinha de fronteira com a China. Se o Paquistão fechar a passagem para a OTAN e os Yankees a logística, que já é difícil, fica quase impossível. Olhem o mapa: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/0/08/CIA_map_of_Afghanistan_in_2007.gif/250px-CIA_map_of_Afghanistan_in_2007.gif A China, por sua vez, vem costurando uma aproximação econômica e militar sem par com este mesmo Paquistão, como forma de precionar a Índia (inimigo… Read more »

Vader

Ivan disse:
9 de janeiro de 2012 às 15:16

Ivan, se o Paquistão fechar o espaço aéreo ao Afeganistão, sabe o que acontece? Nada, a USAF e a US Navy continuarão a passar do mesmo jeito. 🙂

Mas logo logo os americanos terão aberta uma outra passagem para o Afeganistão… Uma bem maior, mais a oeste do Paquistão… 🙂

Abraço.