Rui Barbosa

Há uns poucos de dias que o poço, o ancoradouro do Rio de Janeiro, nos oferece extraordinário panorama. Ao correr dos bondes pelas ruas de onde se descortina o mar, todos os olhos estendem-se para ele. À superfície do elemento azul cinco pavilhões estrangeiros afirmam diversamente o tamanho das nacionalidades, que representam. Ali se ostenta, de extremo a extremo, a escala inteira do poder naval, desde a grandeza crescente da Grã-Bretanha, a mãe dos mares, a semeadora de povos, até à majestade simplesmente histórica da Lusitânia, a soberana descoroada, mas venerável, de cujo manto as vagas parecem roçarem ainda com respeito a fímbria em torno do Adamastor.

Passa e repassa a vista curiosa por essa assembléia extraordinária de testemunhas do oceano, e não lhes pergunta que nos dizem, que nos trazem desses longes do espaço e do tempo, da imensidade vaga, aonde o passado se recolhe, e donde assoma o futuro, como as velas repontam do horizonte. Povo descuidado, abrimos as pálpebras entre dois intervalos de sesta, à brisa da costa dourada pelo sol, banhando-nos na tipidez do ar, na volúpia do colorido, na embriaguez ambiente da luz, e banindo d’alma os pensamentos do imprevisto, cerrando-a ao sussurro da consciência, que fala pelo rugir das águas eternas.

Ingenuamente dilatamos as pupilas, com alguma coisa da impressão primitiva dos antigos hóspedes das nossas selvas, quando essas grandes aves que arribam da civilização açoitaram pela primeira vez com as largas asas brancas a quietude deste estuário, como se, tantos séculos depois, ainda inquiríssemos de onde vêm essas gaivotas gigantescas, onde foram buscar umas a elegância das suas linhas e a alvura do seu dorso, outras a negrura do seu vulto e a arrogância do seu colo.

No olhar dos mais inteligentes, quando muito, se descobriria alguma coisa daquela sensação dos passageiros de um transatlântico, debruçados para o cristal retinto, nas paragens onde palpita o coração do globo, pelas águas quentes do Equador cismando nas maravilhas em que se anunciam à tona essas florestas submarinas, à vista das quais são desertas as da terra, contando um a um esses encantos do inesperado, seguindo essas pradarias do mundo líquido, as górgonas, as ísis, as pálidas anêmonas corde-rosa, os alcíones, a flora cambiante e efêmera, com que as artérias da natureza oceânica ajardinam a zona das calmas, o domínio oscilante das algas, essas regiões onde se espelham complacentemente os resplendores solares, e se ocultam os imensos reservatórios da vida submersa.

Mas não basta admirar: é preciso aprender. O mar é o grande avisador. Pô-lo Deus a bramir junto ao nosso sono, para nos pregar que não durmamos. Por ora a sua proteção nos sorri, antes de se trocar em severidade. As raças nascidas à beira-mar não têm licença de ser míopes; e enxergar, no espaço, corresponde a antever no tempo. A retina exercida nas distâncias marinhas habitua-se a sondar o infinito, como a do marinheiro e a do albatroz. Não se admitem surpresas para o nauta: há de adivinhar a atmosfera como o barômetro, e pressentir a tormenta, quando ela pinta apenas como uma mosca pequenina e longínqua na transparência da imensidade. O mar é um curso de força e uma escola de previdência. Todos os seus espetáculos são lições: não os contemplemos frivolamente.

Na festa de ontem bem poucos se deteriam em penetrar a expressão íntima desses convidados do outro hemisfério, ou do outro continente, cujos canhões honraram a solenidade nacional, cujos galhardetes flameavam em arco à luz do sol, e cujas miríades de focos rutilantes constelaram de noite a baía. Cada um deles era, entretanto, uma interrogação misteriosa ao novo porvir. Esses mensageiros da civilização européia e americana, deslumbrados na magnificência das nossas costas, nas estupendas belezas da nossa terra natal, estudam o homem, que a habita, e procuram nas suas obras o selo das grandezas que o circundam. Quando voltarem desta cerimônia, a que concorreram com a distinção do seu obséquio, com a imponência da sua presença, irão dizer aos que os mandaram se a criatura aqui responde à liberalidade do Criador, se este ramo da família humana trabalha pelo bem comum. E queira Deus que desse juízo nos possamos desvanecer, como com esta fineza nos lisonjeamos.

Bastava que de nossa parte os estudássemos, para sentir quanto nos esquecemos de nós mesmos.

Por ele veríamos como presentemente o valor dos povos quase se mede pelo seu valor no oceano.

Considerai nessa obra-prima do Adamastor, pequeno escrínio de ferro onde parece refugiar-se o maior dos poemas navais, como a mais formosa das línguas no canto dos Lusíadas. Vede o Carlo Alberto, a Calabria, o Piemonte, o orgulho de Roma e de Veneza, esbordando o Mediterrâneo, para ostentar na outra metade do planeta o arrojo das suas aspirações, o garbo das suas obras e o vigor da sua gente.

Olhai para as duas fragatas, a Sofia e a Nixe, vedetas soberbas daquela formidável nacionalidade, cuja ambição arde pela glória naval prelibada não há muito, no heróico lirismo daquelas palavras imperiais:

“Nosso futuro está no mar.” No Iowa e no Oregon, quentes da guerra, estuantes do fogo, como que ainda frementes do canhoneio, medi o poder dos colossos que a liberdade levanta e a miséria dos países marítimos desapercebidos no oceano. Notai, enfim, com que fidalguia de primeiros entre iguais se embalam nas ondas, entre os outros, o Beagle e o Flora, pequenas malhas esparsas da coiraça que abriga pelos mares a potência universal da maior das nações, a antiga regedora das vagas.

Nós tínhamos alguma glória, para não entrar humilhados nesse comício brilhante. Não faz mais de trinta anos que as águas do Prata davam testemunho de proezas inolvidáveis, consumadas por uma esquadra de heróis brasileiros. Acabava a guerra separatista nos Estados Unidos, que tamanha revolução produzira nas artes da luta naval. E, contudo, guardadas as proporções, afirmam os mestres que a campanha fluvial do Paraguai não foi nem menos gloriosa, nem, a certos respeitos, menos instrutiva.

Nos maiores movimentos estratégicos do nosso conflito com o déspota de Assunção coube sempre à nossa armada uma parte capital, decisiva, admirável, e a bravura dos nossos marinheiros, sua inteligência, sua capacidade mostraram em nós ao mundo o nervo, de que se faz o caráter das nações. Era um tesouro, que se não devia malbaratar; e malbaratou-se. Não haveria sacrifícios, que outros não fizessem, por conquistar esse prestígio. Nós o tivemos, obtido à custa do melhor do nosso sangue, e deixamo-lo perder.

É mister reavê-lo, se é que temos empenho em conservar a nossa nacionalidade. O oceano tem sido quase invariavelmente o campo de batalha pela independência das nações que confinam com o mar.

Essa Holanda, um de cujos navios visitou há pouco as nossas águas, não a deveu, no século dezessete, senão às vitórias dos seus almirantes. A Inglaterra não teria preservado a sua existência, se as suas frotas não houvessem desbaratado as da França em 1692, em 1759 e em 1805. A França não teria ido sepultar a sua fortuna com a de Napoleão nos gelos da Rússia, se batesse as forças navais inglesas em Abukir e Trafalgar. A União não teria suplantado, na América do Norte, a revolta dos estados meridionais, se as esquadras da legalidade não levassem imensa vantagem às da confederação. O Brasil sem os seus navios não teria aniquilado o Paraguai. Foi no mar que se abismou a China. Foi no mar que pereceu a Espanha. No mar é que se liquidaria a questão da Argentina com o Chile. E na grande conflagração européia, se um dia se desencadeasse, a última palavra tocaria ao mar.

Ora, presentemente, quando o mar intervém nas questões entre os povos, é como o raio. Em poucos dias a agressão, o combate e a vitória, ou a ruína. Uma batalha suprime uma esquadra, e a supressão de uma esquadra pode envolver o desaparecimento de uma nação. Feliz do que pode ser o primeiro no golpe, e amarrar por bandeira ao grande mastro a vassoura de Tromp. Se ela encontrasse abandonado à sua violência impetuosa um litoral de seis mil e quinhentos quilômetros, pode ser que então a surdez crônica da política brasileira começasse a perceber a voz que detona, por essas praias, além, no fragor contínuo das rochas e das ondas: “Marinheiros! Marinheiros! Marinheiros!”

A Imprensa, 16 de novembro de 1898.

FONTE:  http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/obras_seletas_vol7.pdf

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Vinicius Modolo

Poxa
Onde vcs conseguiram isso? tem algum livro com isso publicado???
eu quero as fontes!

Hornet

Caro Vinicius Modolo,

a fonte está citada, logo abaixo do texto: jornal A Imprensa, ano de 1898, e logo abaixo está o link para vc acessar se quiser.

Quem se interessar por coisas semelhantes, um bom lugar pra visitar também é o site da Biblioteca Nacional: http://www.bn.br/bndigital/ ou http://www.bn.br/portal/

abraços a todos

storm

Como os amigos podem ver (ler) vem de longe o descaso com nossos meios e nossa esquadra. O texto é muito bonito mas também traz uma critica atual para o nosso cenário: Quando os politicos brasileiros vão entender a importância de uma marinha forte e capaz, para proteger um litoral tão vasto e de tantas riquesas da cobiça de outros, o derreota de uma Marinha pode siginificar a subimissão de uma nação. E digo: mais que entender, coisa que acho que entendem é quando vão agir praticamente. Rezo para que a atual crise mundial não pode novamente nossas pretenções de… Read more »

LUIZ BRAZIL  (DT)

Ainda sobre o mar: O poder naval e marítimo de uma nação.

Há 110 anos:

“É mister reavê-lo se é que temos empenho em conservar a nossa nacionalidade (soberania). O oceano tem sido quase invariavelmente o campo de batalha pela independência das nações que confinam com o mar.”
Rui Barbosa

Taer

Fantástico! Parece que foi ontem…..Espero que a crise que se avizinha não sirva de desculpa, como sempre, para postegar o Plano de reaparelhamento da Marinha do Brasil.
Bravo Aguia de Haia!
Sds.

Ulisses

Teremos muitos meios na marinha,certo?Isto é mais do que prova de que se Deus quiser nós teremos uma marinha adequada.

Abraços

Paulo Costa

Bom texto,poetico,e realista para a epoca,pois a tecnologia de hoje,
nos permitiu depender mais do ar do que do mar…
Mas continuo a viver perto do mar…..

Marko Ramius

A dependência do mar aumentou. Quase a totalidade do petróleo é transportada pelo mar e a deterrência nuclear das grandes potências só é possível graças aos mísseis balísticos baseados em submarinos.
Se houver uma hecatombe nuclear, os últimos sobreviventes serão os tripulantes destes submarinos.

Marine

Com certeza para uma nacao como o Brasil tudo comeca e termina com a Marinha. Lembro de ter lido uma vez um Almirante brasileiro dizer que se me lembro bem mais de 80% do comercio brasileiro passa pelo porto de Santos entao uma nacao estrangeira nao precisa nem entrar em acao com o EB ou a FAB, basta bloquear o porto de santos e nada entra ou sai no pais… Sem mercadorias e produtos nao ha comercio, sem comercio a economia vai a falencia, nao entra materiais pesados para continuar a luta, nada…O pais seria forcado a jogar a toalha… Read more »

TENENTE

“A defesa de um Estado é o mais importante de seus problemas”.
(Ruy Barbosa)

“UMA NAÇÃO QUE CONFIA EM SEUS DIREITOS EM VEZ DE CONFIAR EM SEUS SOLDADOS, ENGANA-SE A SI MESMA E PREPARA
A SUA PRÓPRIA QUEDA”.
(Ruy Barbosa)

Ruy Barbosa sabe das coisas…SDS.

Guilherme Poggio

Marine,

Isso ja foi feito na pratica (o bloqueio do porto de Santos). Cito a Revolucao Constitucionalista de 32, quando os paulistas nao puderam receber reforcos pelo mar. Os legalistas empreenderam um bloqueio naval intrasponivel.

Mais sobre esta passagem da historia pode ser lido no ANB.

Paulo Costa

Lembrem senhores,que na segunda guerra,grande parte do
material estrategico que ia do Brasil,à America devido
a possibilidade de perda ia via aérea,pelos DC-3,B-17,
B-24,usando bases no Caribe.A Borracha era uma delas.
Alias ,voces sabiam que a nossa borracha era a unica na
epoca,alem da Malasia que tinha sido tomada pelo Japão.
Sem borracha natural,ate hoje em dia,sem mangueiras dos motores,
dos tanques,sem pneus,etc.Fomos e sempre seremos um pais
estrategico,devido aos nossos recursos…

Iuri Korolev

Galante
Parabéns por encontrar tal texto.

Mas infelizmente a capacidade do Rui Barbosa era mais com palavras.
Ele criou como Ministro da Fazenda uma das maiores crises da República nascente : o Encilhamento.
Liberou a criação de empresas, só que não tínhamos empresários.Foi uma febre no início e depois a quebradeira.
Enquanto nós tinhamos Rui Barbosa aqui, lá nos EUA eles tinham JP Morgan …(não necessariamente na mesma época).
O nosso problema aqui no Brasil sempre falta de líderes de qualidade.
Infelizmente ele era o “melhor” que tinhamos aqui.

Sds
Iuri

Marine

Guilherme,

Obrigado, ja nao lembrava mais dessa parte na nossa historia…

Sds.

Farragut

É a tal da consciência marítima…