Mario Cesar Flores (*)

Do absolutismo português à democracia de massa deste início de século, no Brasil sempre foi parâmetro cultural o pretenso direito de esperar o apoio abrangente, se não a dádiva do Estado – da mão provedora, do protecionismo e emprego público, à caridade assistencialista. Vivemos como rotina a sujeição da cidadania ao Estado (à estadania) e sempre admitimos que o progresso depende menos do esforço e sacrifício da sociedade e mais, ou até essencialmente, da iniciativa e de medidas do Estado.

Essa lógica leviatã é refletida na fantasia ufanista da grandeza nacional espontânea em razão da extensão territorial e dos recursos naturais do país. Grandeza na verdade virtual, cuja transformação em riqueza útil ao povo depende da correta dimensão da presença do Estado na vida nacional e da competência, criatividade, investimento e muito trabalho da sociedade – ingredientes do excelente desenvolvimento dos EUA no século 19, de país colonial à 1ª potência do mundo, em que o Estado era mais estímulo e regulador do que agente direto: ajudava, não atrapalhava. Se território e natureza fossem riqueza em si, Suíça, Holanda e Bélgica seriam pobres, Luxemburgo paupérrimo… As manifestações de vaidade poética do hino nacional – “gigante pela própria natureza”, “deitado eternamente em berço esplêndido” e “impávido colosso” – refletem esse ufanismo inebriante. Faltam-lhes um complemento sobre o esforço necessário para que o “impávido colosso” se levante do “berço esplendido” e transforme “a própria natureza” em riqueza, para que o Brasil deixe de ser o “país do futuro”, assim classificado há 70 anos por Stefan Zweig, passando ao patamar a que de fato o credencia seu potencial.

Existem na sociedade brasileira as condições necessárias à odisséia da grande transformação, haja vista o razoável sucesso de setores de nossa economia – é bem verdade que, mesmo eles, em geral fãs das muletas estatais – o cofre provedor e a alfândega protetora…. Mas ainda falta muito para engajá-la toda na reorientação da confortável
idéia de grandeza como fortuna natural ou propiciada pela mágica estatal, para a efetiva construção nacional. E isso não será fácil enquanto parte ponderável do caráter coletivo continuar preferenciando a expectativa da felicidade impulsionada pelo Estado sobrenatural do conceito expresso há quase 200 anos por Fréderic Bastiat: “o Estado é a grande ficção através da qual todo mundo se esforça para viver à custa de todo mundo”. Todo mundo mesmo: dos políticos e apaniguados que se sentem com direito ao patrimonial-clientelismo do butim eleitoral, dos segmentos empresariais e seu trabalho associado, apoiados em financiamentos públicos, protecionismo e renúncias fiscais, dos servidores públicos que se crêem credenciados às benesses de sócios preferenciais do Estado, aos conformados consumidores de assistencialismo.

Tampouco será fácil enquanto grande parte da sociedade brasileira continuar aceitando satisfeita a euforia das ilusões, disseminada pela propaganda narcótica enaltecedora do estatismo salvacionista, que se vale de fatos positivos (entre outros, na moda hoje o petróleo do pré-sal, por muito tempo ainda riqueza virtual do “gigante pela própria
natureza”…), metáforas fantasiosas e afirmações grandiloqüentes, para dissimular as atribulações que castigam o país: a preocupante involução aética da política, cujos efeitos permeiam tudo o mais, a iniqüidade social e a exclusão conformada pelas bolsas disso e daquilo, o precário quadro da educação e da saúde (com gente morrendo nos corredores de hospitais públicos – o que não constrange a previsão de obras grandiosas para eventos esportivos internacionais que deixarão felizes empreiteiras e afins…), o desenfreado desrespeito à lei, do delito trivial à violência e criminalidade epidêmicas, estradas destruídas, portos ineficientes, regime carcerário desumano, Judiciário de lentidão proporcional à sua singularidade no universo salarial brasileiro, Legislativo desacreditado pela semi-paralisia e práticas de (eufemismo delicado) discutível virtude… – dezenas de deficiências que afrontam a euforia.

Aqui, como em qualquer parte do mundo, não é seguro afirmar que a saga política seja indefinidamente imune à combinação das deficiências do Estado no desempenho de suas responsabilidades, com a fé fanática no Estado e a abdicação da cidadania ao Estado, seja imune à frustração psicopolítica do caráter coletivo, propenso à dádiva do “impávido colosso” e do gigantismo “pela própria natureza”, à êxtase do carnaval e feriadão, às idéias paradisíacas de bem estar natural (da redução da jornada de trabalho, que o “impávido colosso” mágico viabilizaria sem perda de competitividade e sem custo ao consumidor…), a que a euforia ilusória aporta seu alento anestésico.
Não há hoje clima para regimes ao estilo século 20. Mas não se pode afirmar idêntica implausibilidade para o salvacionismo messiânico travestido de legalidade eleitoral-democrática, sob lideranças carismático-sebastianistas hábeis na fórmula romana “pão e circo”: o pão assistencialista e o circo do oba-oba eufórico, hoje muito pré-
salgado e agora também olímpico, a que a mídia cooptada pela propaganda aporta sua prestidigitação, em especial a TV, cuja imagem dispensa o raciocínio crítico. Tudo no figurino populista-estatista que parece estar voltando à América do Sul, à reboque da Venezuela, após 25 anos de recesso.

Os autoritarismos da esquerda à direita, sempre estiveram afinados com o estatismo exacerbado e a abdicação da cidadania ao Estado, ambos inconciliáveis com a democracia plena. Até porque, se o Estado é pretendido como provedor onipresente, deve caber-lhe naturalmente a autoridade correspondente – uma equação histórica de que o Brasil aparentemente não está livre.

(*) Almirante-de-Esquadra (Reformado)

Publicado no “O Estado de São Paulo” de 17/10/2009

COLABOROU: Leosg

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Fábio Mayer

O fato é que no Brasil todo mundo sonha com emprego público, seja por concurso, seja em comissão ou de confiança.

Duvido que isso mude. Ainda mais depois destes ultimos 16 anos da dupla PSDB/PT, adeptos do empreguismo e do Diário Oficial para os amigos e da Lei para os adversários.

camberiu

Um almirante citando Bastiat? Que milagre…..Ele deve ser uma minoria infima nas atuais forcas marmadas brasileiras, todos fies defensores do gigantismo estatal e da ideia de que o estado (e as FAs) devem ser propulsores do desenvolvimento tecnologico/industrial do pais.

Mas e bom saber que nem tudo esta perdido e uns poucos sao capazes de citar Bastiat. Bonito mesmo seria ver uma Brigadeiro ou general citar Hayek ou Mises.

muscimol

tem uma coisa nesta frase: “EUA à 1ª potência do mundo”

isto aconteceu nao por merito proprio mas porque as potencias da Europa auto destruiram-se conjuntamente com as potencias emergentes do Japao e da China. Senao quem sabe onde teria aparecido a primeira bomba nuclear!!?? …. nao nos me parece que seria nos EUA.

Aurélio

Quando este almirante era Ministro da Marinha, ele defendia o Estado -Empresário. Naquele tempo tudo tinha que ser estatal: geração de energia elétrica,siderurgia,refino de petróleo, comunicações, etc, alegando-se para tal, que a iniciativa privada era incompetente. Não acredito que ele tenha mudado de idéia, deve ter recebido pelo artigo que escreveu no jornal.

Felipe Cps

Poucas vezes li um texto tão completo, tão verdadeiro e tão profundo como este. O verdadeiro caminho do nacionalismo não-ufanista passa pelo fim do Estatismo, o fim do ritual do Beija-Mão estatal, o fim do “controlismo”, o fim da Lei como panacéia de todos os males, coisa que as maiores potências econômicas mundiais descobriram no séc XIX, que algumas novas potências descobriram no decorrer do séc XX, e que ainda estamos (infelizmente) por nos conscientizar. Mil vezes parabéns ao Poder Naval. Uma pena que alguns colegas prefiram desqualificar o escriba a refletir sobre sua mensagem. E outro ainda, em vez… Read more »

camberiu

Nao sei se os leitores (ou ate mesmo editores) do Blog perceberam que o almirante esta dando uma alfinetada naqueles que pregam que “o Brasil tem que ter forcas armadas condizentes com a sua grandeza”. Bastiat, o autor cidado pelo almirante, era um ferrenho critico do militarismo exacerbado e do peso das instituicoes militares na base contribuinte de uma sociedade. Bastiat escreveu um ensaio muito interessante chamado “O Disbandar das Tropas”. Nesse ensaio, ele critica muito bem a ideia de que gastos militares trazem beneficios economicos para uma sociedade. vejam bem, Bastiat nao critica a existencia das forcas armadas em… Read more »

Dalton

Muscimol…

os EUA nao sao uma potencia por merito proprio?

Um pais de dimensoes continentais,com grandes recursos naturais e grande mao de obra e que abraçou a revoluçao industrial desde o inicio nao tem mérito proprio? São o que são apenas porque europeus
se auto-destruiram?

Lembro que em plena guerra civil (1861-1865) grandes avanços
surgiram, como o monitor, a metralhadora gatling sem falar na
malha ferroviaria que já era bastante desenvolvida e causou sensaçao nos observadores militares estrangeiros que lá estavam para testemunhar a primeira guerra moderna.

abraços

Getulio - São Paulo

Eu gostei desta matéria postada. É um avanço ao debate. Nosso país precisa muito.
É verdadeiro o estado lastimável de nossas escolas e hospitais. Um grande país precisa sanear estas questões. Não é possível crescer sem educação e sem saúde.
Mas também não podemos deixar de falar dos políticos e de seus mandatos eternos.
O fim da reeleição continuadas dos mandatos dos políticos seria providencial para um salto de qualidade de quem deveria pensar nestas questão citadas no texto.

Marine

Lindo ver alguem capaz de auto critica sem esse ufanismo cego!

Nunão

“camberiu em 19 out, 2009 às 12:31” Camberiu, Nesse caso vale mais a pena analisar outros textos do próprio autor, recentes e mais antigos. Já li vários textos do autor, desde os recentes até coisa de mais de 20 anos atrás, e certamente dá pra perceber algumas mudanças graduais em opiniões mas, principalmente, diversas permanências. Diria que o fato dele citar uma das opiniões de Fréderic Bastiat não significa que ele concorde com todas as opiniões do mesmo, apenas escolheu o que achou mais adequado no autor de dois séculos atrás. (mesmo porque ninguém seguiria a ferro e fogo textos… Read more »

marujo

Ele ministro da Marinha do presidente Itamar.

André

Marujo,
Ele foi Ministro da Marinha do Presidente Collor.
Sds.

Coral Sea

Até que enfim um excelente artigo; depois de vários bem “fracos”…
Ultimamente tem aparecido cada figura que haja paciência…

Marcos Pesado

Ora, o articulista parece viver em um outro país. Abro os jornais e revistas, escuto os rádios, vejo os noticiários nos canais de televisão e, com raríssimas exceções, o que vejo, antes de qualquer elogio ao estatismo, são loas ao “livre mercado” e críticas a qualquer intervenção do Estado. Não sejamos ingênuos. Por trás dos destratores da intervenção estatal estão escondidos, ou os incautos, ou aqueles que defendem um papel subalterno do país na nova ordem mundial. A história está aí para quem quiser – e não tiver preguiça intelectual – verificar que este dicurso é recorrente e sempre desfraldado… Read more »

muscimol

Dalton, “Um pais de dimensoes continentais,com grandes recursos naturais e grande mao de obra e que abraçou a revoluçao industrial desde o inicio nao tem mérito proprio?” os EUA tornaram-se o que sao quando milhares de cientistas fugiram para os EUA, especialmente da alemanha ….o pai do Nuclear, o pai dos foguetes, dos avioes a jato, etc etc …tudo o que fizeram as grandes potencias do pos WW2. Ter dimensao e abracar a revolucao industrial nao chega …o triangulo tecnologico e cientifico estava entre Berlim-Paris-Londres …. nao e a toa que O British empire e outros europeus acabaram com a… Read more »

catraca

Opiniões tudo mundo tem e um Almirante deve ter muitas opiniões, sobre tudo e todos indiscriminadamente e indefinidamente, mas não são verdades absolutas e como tal me apego a um único detalhe que não vai muito longe só pra manter o debate no nível em que se encontra. O que seria das grandes corporações se não tivesse havido o socorro do ESTADO na última grande crise econômica mundial ? Deveria ter se mantido equidistante das soluções e do socorro necessário para debelá-la ?? Até onde vai o papel do ESTADO no mundo moderno, onde a CHINA ( quem diria ??… Read more »

Dalton

Muscimol meu caro… será que vc nao está exagerando um pouquinho?? (rs) Os EUA igualmente tinham coisas boas antes da guerra, por exemplo, eles começaram com o B17 e terminaram com o B29 e devido aos rumos que a guerra estava tomando o B36 muito maior teve sua velocidade de produçao diminuida… Para ficar em termos navais, os alemaes viviam tendo dores de cabeça com as maquinas de muitos de seus navios, seu unico porta-avioes nao chegou a entrar em serviço e estava muito aquem do que os EUA possuiam…a classe Essex. Há muita coisa que tambem se estava fazendo… Read more »

Guga

Gostei dessa mudança de rumo nas postagens e concordo parcialmente com o pernóstico autor.

P.S. Sou funcionario público

paulo s

admiro muito o almirante flores a muitos anos.finalmente alguem escreve umas verdades sobre este pais.

Noel

Dalton em 19 out, 2009 às 21:09
Nem precisava enumerar tantos meios militares americanos, bastava citar, que os U.S. sairam da I Guerra como grande potência, e já tinham grandes indústrias, tanto é que foram o “peso na balança” que determinou a vitória dos aliados; no pós I Guerra, Hollywood estava nascendo, juntamente com a indústria do intretenimento, turismo, comercial consumista pesado, e eles também já possuiam grandes Universidades.
Sds
Quanto ao texto do Almirante: muito bom, muito bom mesmo.

alex

Usar commo exemplo os Estados Unidos para criticar o estatismo parece no mínimo um certo desconhecimento e acreditar no mito criado pelos Estado Unidos sobre si mesmo. Façamos uma análise mais profunda, quanto do PIB norte-americano é movimentado pelo Estado Norte-Americano? Os valores são tamanhos, que jogam por terra essa tese. Que recursos financiam em sua maioria as pesquisas científicas nos Estados Unidos, mesmo em fundações privadas? São financiamentos estatais! As empresas do aparato estatal militar recebem profundos investimentos e financiamentos do Estado Norte-Americano e estão em profunda simbiose com ele, pois sua sobrevivência depende disso. Estou defendendo a tese… Read more »

Felipe Cps

Amigo Alex: mas são empresas PRIVADAS, não estatais! Via de regra FUNCIONAM, sem “cabidismo”! O governo, no máximo, possui “golden share” pelo caráter estratégico.

Aliás, honestamente nem sei se existem estatais nos EUA…

Sds.

catraca

Caro alex, Concordo e digo mais, livre iniciativa sim democracia sim mas com o controle de um Estado NECESSÁRIO, onde o respeito as regras seja condição primeira para a sua existência, o Brasil na última crise deu demonstração de maturidade no gerenciamento de seus ativos, enquanto nos EUA e na EUROPA o Estado foi obrigado a socorrer o SETOR FINANCEIRO, logo ele, o que mais mal causa e sempre causou a nossa economia, com as avalanches de capital especulativo que sempre ( até a gestão atual do nosso Banco Central )aportaram por aqui, tendo inclusive o apoio de algumas gestões… Read more »

muscimol

pois claro, quando tres potencias continentais se autodestroiem o emergir duma outra potencia torna-se mais facil. Nao vale apenas enumerares os exemplos … eles nao eram o Brasil …claro que eram uma potencia emergente … eles tornaram-se a zona industrial da europa …especialmente para os britanicos. o que os fez verdadeiramente uma super potencia foi a tranferencia de tecnologia em muitas area e como exemplo maior a bomba nuclear … porque achas que a Franca e uma potencia no conselho de seguranca? http://en.wikipedia.org/wiki/British_Empire http://en.wikipedia.org/wiki/Wernher_von_Braun http://en.wikipedia.org/wiki/Jet_aircraft http://en.wikipedia.org/wiki/Enrico_Fermi IMPORTANTE …. ve de onde sao os primeiros premios Nobel na sua generalidade …… Read more »

Dalton

Muscimol… pode ser que nao esteja sabendo interpretar o que realmente vc quer escrever, então peço desculpas se for o caso… mas o que entendo é que na sua opinião os EUA não eram nada antes da I Guerra (1914-1918). Um humilde exemplo na area naval que é onde eu me sinto um pouco mais a vontade. Os britanicos lançaram o HMS dreadnought que virou uma marca registrada por assim dizer, mas ao mesmo tempo os EUA estavam construindo o USS South Carolina, na verdade ele foi iniciado antes mas demorou mais tempo para ficar pronto e perdeu seu lugar… Read more »

muscimol

os EUA de agora nao sao desafiados por ninguem!! a diferenca entre o poderio tecnologico e militar de agora e os outros e tao grande que nao tem comparacao a nao ser com o imperio romano. Na altura da primeira guerra eram apenas mais uma potencia…emergente mas potencia …tanto que os Japoneses achavam que os podiam comer:) Mas tornaram-se SUPER potencia com a fagocitose da Europa. Eles foram e muito bem poupados a uma carnificina e destruicao terretorial que os deixou em vantagem por muitas longas decadas. continuamos no chat no fim de semana … e mais facil a dicussao… Read more »

The Captain

Só pra lembrar: Samuel Morse, o do “código” era americano, assim como o Edison, o da “lâmpada elétrica” e tem também o Sr. Colt, aquele do primeiro revólver.

muscimol

bofff. less tomber …niguem disse que eles eram nulos ou que nao fizeram nada….nao e isso que esta em causa.
bom assunto para o chat