Hidropirataria na Amazônia, um delírio

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Antonio Felix Domingues

Há anos o fantasma da hidropirataria ronda cabeças no Brasil. Embora seja contada como uma história quase policial, a hidropirataria é um delírio que, em vez de contribuir para maior valorização da água, acaba desviando a atenção de problemas reais, como a insuficiente cobertura da rede de água tratada para as populações amazônicas, o índice mais baixo do Brasil.

A história, tema recorrente na mídia, conta que grandes navios-tanque vêm até o Rio Amazonas, ora próximo a Manaus, ora na sua foz, para roubar água do território brasileiro e levá-la para países sedentos. À primeira vista, a hidropirataria nos revoltaria e teríamos, evidentemente, de tomar providências contra a atividade. Entretanto, essa história não encontra fundamento, posto que as leis da economia, de forma indistinta, regem os interesses de todas as atividades comerciais.

Em valores atuais, 1 m3, ou 1 tonelada de água, custa entre US$ 0,25 e US$ 0,50 por dia para ser transportado em navios de grande porte para granéis líquidos. Qualquer viagem para um dos chamados “países com sede”, localizados no Caribe ou no Oriente Médio, por exemplo, demoraria vários dias, ao que se impõe uma realidade importantíssima: o custo da água atingiria valores superiores a US$ 3 por m3 para uma viagem de 10 dias a 13 dias, mais os custos de tratamento para torná-la potável, ao redor de US$ 0,40/m3. Esses valores nos mostram a impossibilidade do comércio mundial de água bruta para abastecimento público utilizando-se o transporte marítimo, porque os custos do frete de granéis líquidos tornam a atividade inviável em distâncias superiores a 500 km.

A realidade que está resolvendo a sede dos países é a dessalinização e o reúso, que, com tecnologia e escala, operam a custos cada vez menores. Em Israel, três plantas dessalinizadoras (Ashkelon, Hadera e Sorek), no modelo de parcerias público-privadas (PPPs), fornecem água potável a 3,5 milhões de pessoas a um custo médio de US$ 0,60/m3. Dessa maneira, Israel, dentro de alguns anos, não vai mais comprar água da Turquia, o único caso conhecido de transporte de água em navios-tanque e que, apesar da distância de apenas 600 km, está perdendo toda viabilidade econômica.

Existem hoje cerca de 380 plantas de dessalinização em todo o mundo. No Brasil há apenas uma pequena unidade, funcionando na Ilha de Fernando de Noronha, que opera ao custo de US$ 1/m3. É interessante ressaltar que nem para Fernando de Noronha compensaria levar água em navios-tanque.

Existe, sim, um comércio de água entre países, de características muito limitadas, que ocorre por aquedutos, como, por exemplo, entre Lesoto e África do Sul, Malásia e Cingapura, Turquia e Chipre.

Por outro lado, o Brasil, o país mais rico do mundo em água doce, começa a se beneficiar com a exportação de água, mas não na sua forma líquida, e sim da maneira que se convencionou chamar de água virtual, aquela que é exigida para a produção de bens agrícolas ou industriais. Alguns produtos, como grãos, frutas, carnes, aço, papel, açúcar e álcool, demandam grandes quantidades de água para serem produzidos e muitos países já encontram dificuldades ambientais para a produção desses produtos e, por isso, precisam importá-los de países com água e solo em abundância, como o Brasil, por exemplo.

Provavelmente a história da hidropirataria nasceu de uma confusão que se faz com a prática do uso da água como lastro para os navios. Sem o lastro o navio não tem segurança, navegabilidade nem equilíbrio para a viagem, operações e manobras necessárias. A água de lastro é bombeada para dentro e para fora dos navios, de acordo com a necessidade operacional. Essa prática rotineira tem trazido ao mundo problemas expressivos por causa da introdução de organismos invasores que passam pelos filtros da rede e das bombas de lastro. Atualmente, cerca de 5 bilhões de toneladas de água são movimentadas por ano entre diferentes regiões do globo.

Estimam-se em US$ 100 bilhões por ano os prejuízos globais causados por espécies invasoras na água doce levadas de um continente a outro. Os Estados Unidos gastam por ano cerca de US$ 10 bilhões, principalmente por causa do mexilhão zebra (Dreissena polymorpha).

No Brasil, há cerca de dez anos, foi introduzido o mexilhão dourado (Limnoperna fortunei), trazido por navios do Sudeste Asiático à Bacia do Prata. Para tentar prevenir o flagelo mundial provocado pela introdução de espécies exóticas a Organização Marítima Internacional (IMO), a agência das Nações Unidas responsável pela segurança da navegação e prevenção da poluição marinha, adotou, desde 2004, uma nova Convenção Internacional para Controle e Gestão da Água de Lastro e Sedimento de Navios.

Ainda que o transporte de água doce por navio fosse economicamente viável, quem o fizesse estaria contrariando o principal pressuposto dessa convenção, que é despejar no mar a água doce de lastro trazida de qualquer país, antes de retornar, para evitar a contaminação.

Esforços têm sido intensificados para fiscalizar a água de lastro em costas e portos brasileiros. Esperamos que o Brasil possa, num futuro breve, ser citado como um bom exemplo para os demais países, signatários ou não, da referida convenção.

Portanto, problemas reais de água na Amazônia existem, sim, embora não despertem tanta atenção. Como, por exemplo, o fato de que na área mais rica de água doce do planeta cerca de 40% da população ainda não tem acesso a água tratada, o índice mais baixo no País, cuja média é de cerca de 10%. Esse é, sem dúvida, um fato incômodo e real, que deveria ser objeto de nossa preocupação.

FONTE: O Estado de S. Paulo – 10/07/2010

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Vader

Perfeito!

Post histórico! Mais um da série “lendas do antiamericanismo”! 🙂

Fim de uma das mais ridículas lendas da internet (acho que a mais ridícula)!

Parabéns à Trilogia.

Ozawa

P.S. Antonio Felix Domingues é Coordenador de Articulação e Comunicação da Agência Nacional de Águas (ANA), À guisa de complementação, enxerto matéria sobre o mesmo tema publica na Gazeta do Povo, de 23/06/2010, com esclarecimentos de autoridades da MB e PF: MARINHA E PF NEGAM EXISTÊNCIA DO TRÁFICO DE ÁGUAS NO BRASIL – Por Denise Paro Representantes da Marinha e da Polícia Federal (PF) afirmaram ontem que não há informações concretas sobre a existência no Brasil da hidropirataria – prática também conhecida como tráfico de água. O assunto foi debatido ontem durante audiência pública na Câmara dos Deputados. Na Argentina,… Read more »

Paulo Costa

Por info anteriores,navios que levavam petroleo do Oriente medio para a America,muitas vezes na volta ,por serem tanques,lavavam o porão,
e mudavam pouco a rota ,para voltar com agua do Amazonas,tem
um estudo,e e´ muito mais compensador,para agricultura,ou uso industrial….Assim que o preço da agua for mais caro,paises começarão
a rebocar icebergs,como forma de baratear custos….
Sistemas de filtragem por osmose reversa,são mantas filtrantes,que
purificarm a agua,depois o fluxo é invertido para limpeza das mantas,
tudo movido a energia eletrica,sempre foi um sistema caro,mas vital….

SABRE

As vezes a galera viaja, mesmo depois de um navio tanque ter descarregado sempre sobra petróleo no tanque, a água seria imprópria , normalmente que escreve esses absurdos nunca nem colocou o pé na Amazônia! Ainda acha que vai achar jacaré no meio de Belém ou qualquer outra cidade do norte,infelizmente pelo muito que já viajei posso dizer a galera do Sul e sudeste do Brasil não conhece a realidade da região além de serem bem fraquinhos em geografia!

SABRE

Paulo Costa , hahaha um pouco de rota sabe qual a distância que ele teria que desviar do atlântico até chegar a uma area da foz que seja àgua doce, sem ser misturada (saloba) praticamente teria que atracar em Belém, outra viagem pior e ir até Manaus uns 6 dias de viagem da foz só para pegar água? Moro na região e te digo que é muita viagem literalmente!Como disse coisa de quem imagina de longe

Vader

Caraca, nem a reportagem falando que isso é viagem?????

Putz, incrível, tem gente que não “desacredita” nas lendas de internet nem assistindo com os próprios olhos…